Inês Rugani: "O sistema alimentar hegemônico adoece e exclui.”
Data de Publicação: 11 de agosto de 2025
Crédito da Matéria: Soraya Bertoncello | Assessoria de Comunicação - para Semana da Alimentação 2025
A 23ª Semana da Alimentação RS já tem data marcada: de 13 a 19 de outubro.
Neste ano, o tema será “Desafios e caminhos sustentáveis por comida de verdade para todos”, com foco em mobilizar a sociedade na luta por formas de produzir, distribuir e consumir alimentos que respeitem o meio ambiente, combatam as desigualdades e garantam o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas.
Para aprofundar esse debate, entrevistamos a professora Inês Rugani Ribeiro de Castro, que é nutricionista sanitarista, doutora em Saúde Pública e professora titular do Instituto de Nutrição da UERJ. Reconhecida por sua atuação na formulação de políticas públicas e na defesa da alimentação adequada e saudável, Inês fala sobre os limites do modelo agroalimentar dominante, os impactos da crise climática e da desigualdade no acesso à comida, e os caminhos possíveis para transformar esse cenário.
Confira a entrevista:
Por que precisamos falar sobre alimentação em um país como o Brasil?
É fundamental a gente falar sobre comida num país como o Brasil, entendendo que a comida é uma marca da nossa identidade coletiva, é um direito humano, e que a gente tem no Brasil uma série de potencialidades e experiências incríveis de cultura alimentar e de cultivo alimentar. Ao mesmo tempo, temos desigualdades profundas e a violação desse direito acontecendo diariamente na vida de tantas pessoas.
Daí a importância de falar sobre esse assunto, entendendo também a relação que ele tem com a saúde e com a sustentabilidade do planeta — e o quanto as escolhas que a gente faz, e o modo como conduzimos os nossos sistemas alimentares, vão contribuir ou não para a melhoria da saúde e para a sustentabilidade.
Da forma como estão organizados hoje os nossos sistemas alimentares hegemônicos, a gente não contribui nem para a nossa saúde, nem para a sustentabilidade. Ao contrário: hoje temos um sistema alimentar que contribui para o adoecimento das pessoas, para o aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas, e para o esgotamento do nosso planeta.
O que comemos está, sem dúvidas, relacionado ao modelo de sociedade em que vivemos. Que conexões podemos destacar entre alimentação, desigualdade social e crise climática?
Essa pergunta se conecta muito com a anterior, né? Sem dúvida, a forma como a nossa alimentação está estruturada expressa bastante o projeto de sociedade que a gente tem. E o que vemos é que esse projeto está marcado por profundas desigualdades em vários sentidos.
Hoje, temos pessoas que não têm seu direito à alimentação garantido, que convivem diariamente com a preocupação se vão conseguir se alimentar — e isso vai desde essa insegurança até situações em que as pessoas, de fato, não conseguem se alimentar suficientemente, vivendo quadros de insegurança alimentar moderada ou grave.
A relação disso com a crise climática é profundíssima. Os nossos sistemas alimentares hegemônicos são um importante vetor da crise climática, porque os processos de produção, comercialização, consumo e descarte são totalmente insustentáveis. São esses processos que hoje estão provocando a crise.
E, à medida que a crise se agrava, a gente entra num ciclo vicioso, porque esses sistemas alimentares não têm resiliência para lidar com ela. Então, passamos a ver situações como perda de safra e fome aguda em algumas regiões. É um cenário muito preocupante, um ciclo que, infelizmente, ainda não dá sinais de superação.
Sabemos que os ultraprocessados estão cada vez mais presentes nas prateleiras e nos pratos da população. Em geral, são produtos mais baratos e acessíveis do que alimentos frescos. Que mecanismos econômicos e políticos favorecem a hegemonia da indústria dos ultraprocessados? É possível fazer o enfrentamento? Como?
Sem dúvida, os ultraprocessados estão cada vez mais presentes e, de fato, historicamente, nos últimos anos, os preços vêm mudando de forma a torná-los mais acessíveis e baratos do que os alimentos frescos. Eles não só custam menos, como também estão mais disponíveis, mais facilmente acessíveis do que os alimentos in natura.
A gente tem vários mecanismos econômicos e políticos que favorecem esse cenário. Um deles, que eu gostaria de destacar, é o sistema tributário. Hoje, temos mecanismos de tributação que acabam beneficiando os ultraprocessados. Por isso, é tão importante o debate que está acontecendo no Brasil em torno da reforma tributária — principalmente no que diz respeito à criação de uma taxação diferenciada para esses produtos e, por outro lado, à isenção de tributos para alimentos in natura e minimamente processados, especialmente os que compõem a cesta básica.
Esse enfrentamento precisa acontecer, em parte, a partir da explicitação dessas distorções. Um exemplo muito evidente disso é a aberração que temos com os refrigerantes: os insumos usados na produção recebem subsídios por meio da Zona Franca de Manaus. Ou seja, independentemente de você consumir ou não refrigerante, os impostos que você paga ajudam a financiar essa indústria no Brasil.
Além da reforma tributária, há outro aspecto essencial: a forma como organizamos o abastecimento alimentar nas cidades. Recentemente foi aprovada a Política Nacional de Abastecimento Alimentar, e agora é fundamental dar consequência a ela — ou seja, fortalecer sua implementação. Essa política trata justamente desse elo da cadeia alimentar que é o abastecimento, especialmente nas grandes cidades, onde existem enormes bolsões de exclusão social e vulnerabilidade.
Que políticas públicas tu consideras mais urgentes para garantir o acesso à comida de verdade no Brasil e tentarmos garantir o direito humano à alimentação e nutrição adequadas?
Quais políticas públicas eu considero mais urgentes? Acho que já fui pontuando algumas ao longo da conversa, mas destacaria, primeiro, a política de tributação — que precisa ser feita de maneira a favorecer os alimentos saudáveis. Também considero fundamental a política de abastecimento, que já foi aprovada recentemente e precisa ser efetivamente implementada.
Outro ponto muito importante é o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, porque precisamos de uma inflexão urgente nessa lógica de aprovar cada vez mais agrotóxicos e seguir incentivando uma forma de produção de alimentos completamente insustentável, que não produz saúde. O enfrentamento disso é essencial. A gente precisa mudar essa lógica e caminhar para uma produção hegemonicamente agroecológica — e, infelizmente, ainda estamos muito longe disso. Mas essa transição é absolutamente necessária.
O Bolsa Família e a valorização do salário mínimo, todas essas medidas que garantem condições mais dignas de vida e de acesso à renda, para que as pessoas possam acessar alimentos, são políticas que são urgentes. Algumas já foram implementadas e precisam ser fortalecidas, outras ainda precisam sair do papel.
Além disso, tem uma política que a gente chama de inclusão sanitária, que é superar as barreiras das normas sanitárias que, muitas vezes, favorecem produtos das grandes corporações e dificultam a comercialização dos alimentos produzidos por pequenos agricultores. Essa mudança é essencial para que esses alimentos possam circular legalmente e com tranquilidade no mercado.
Por que comer bem ainda é um luxo, se deveria ser um direito?
Você pergunta por que comer bem ainda é um luxo, se deveria ser um direito. Na verdade, é um direito que é violado diariamente. Ele está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantido também pela Constituição brasileira. É dever do Estado promover, prover e respeitar esse direito. Mas ele é violado diariamente para milhões de pessoas no nosso país.
E a resposta de porque isso acontece é porque a gente tem uma lógica de funcionamento da sociedade que não valoriza, não honra e não viabiliza a garantia de direitos. O foco está em produzir lucro — cada vez mais lucro — para quem já é muito rico: grandes corporações, grandes bancos, grandes cadeias de produção. Por outro lado, isso vulnerabiliza justamente as pessoas que tem menos, com menos condições financeiras, que vivem em lugares vulnerabilizados... Então a gente tem uma situação de profunda desigualdade no país, né?
A gente vive uma situação de profunda desigualdade, que não é só econômica. É também uma desigualdade de raça, de gênero. Então, é muito importante trazer a perspectiva das interseccionalidades — entender que essas desigualdades se sobrepõem e que nem todas as pessoas sofrem da mesma maneira. E a gente tem pessoas, e são as mulheres pretas, as que sofrem mais.
Então, superar essa realidade que você diz, esse cenário em que comer bem ainda é um luxo e deveria ser um direito, é a superação da forma como a nossa sociedade está organizada. Significa enfrentar a estrutura desigual da nossa sociedade, uma sociedade que historicamente beneficia as elites em detrimento da maioria da população.
